A Obsessão positiva de Octavia E. Butler

A Obsessão positiva de Octavia E. Butler

Talvez uma forma de olhar para a obra de Octavia E. Butler seja pensá-la como um conjunto de narrativas familiares. Mães, pais, filhos, irmãos, e o impacto desses laços aparecem em diferentes textos da escritora.

“Obsessão positiva” é um dos textos presentes na coletânea Filhos de sangue e outras histórias.

Com isso em mente, parece natural que a sua relação com a escrita tenha surgido por influência familiar. Conhecida como a Dama da Ficção Cientifica, Octavia  teve seu amor por histórias alimentado desde cedo, com sua mãe as lendo  para ela dormir e depois, incentivando que  buscasse suas próprias.

“— O livro está aqui. Agora leia você.
Ela não sabia o que estava tramando para nós duas”

O que acabou sendo tramado foram doze romances, dois livros de contos e diversos textos de não ficção de temáticas variadas, além de outros trabalhos nunca finalizados.

Mas seus companheiros fiéis sempre foram os cadernos onde escrevia suas histórias, como ela mesma relata no texto “Obsessão positiva”, publicado inicialmente como “O nascimento de uma escritora”, pela revista Essence. Muito antes que seus personagens se lançassem ao espaço e a mundos desconhecidos, a própria Butler usava sua escrita como uma forma de estar em qualquer lugar onde não houvesse colegas de escola cruéis e professores condescendentes.

O incentivo por buscar histórias e se manter conectada a leitura também serviu como escapatória, já que Butler se descreve como uma garota tímida enquanto crescia. Além dos livros de uma biblioteca pública, ela contava com alguns conquistados com muito afinco por sua mãe, que era uma diarista e trazia sempre livros e revistas que eram jogados fora.

“Quando não tinha histórias para ler, aprendi a inventá-las.”

No texto já citado, a autora afirma que passou sua adolescência e parte dos vinte anos colecionando cartas de rejeição padronizadas. Ainda na escola, amigos e conhecidos que liam seus trabalhos pareciam gostar, e seus professores traziam críticas “gentis e pouco proveitosas”. Na faculdade, ao escrever diversos trabalhos de fantasia e ficção científica para uma das disciplinas, ouviu da professora:

Você consegue escrever alguma coisa normal?”

Como nas melhores narrativas de superação, Butler participaria de um concurso acadêmico e ficaria em primeiro lugar, apesar de ser uma caloura de apenas 18 anos competindo com colegas mais velhos e experientes. Os 500 dólares do prêmio seriam o primeiro dinheiro que receberia como autora.

crédito: Cheung Ching Ming

Ao contrário das melhores narrativas de superação, o reconhecimento como escritora demoraria mais um pouco. Após a faculdade, Octavia teve empregos administrativos e trabalhou em fábricas e armazéns. Quando ficava insatisfeita, se demitia e arrumava outros trabalhos. E seguia escrevendo, apesar das cartas de rejeição que ainda chegavam.

As respostas pouco encorajadoras, e outros fatores (como a maioria esmagadora de autores homens e brancos escrevendo ficção científica), alimentavam suas inseguranças. Quem era ela, e o que podia fazer? Segundo a própria, era aí que entrava a “obsessão positiva”.

“Bem, o que quer que fosse, não consegui parar. A obsessão positiva tem a ver com não ser capaz de parar apenas porque você está com medo e cheia de dúvidas. A obsessão positiva é perigosa. Tem a ver com não ser capaz de parar de jeito nenhum”.

Octavia E. Butler não tinha pretensões de profeta, como a protagonista de seu romance A parábola do semeador. Mas também seguiu com sua escrita apesar das dúvidas e das rejeições, do mesmo modo que a jovem Lauren Olamina constrói uma nova fé enquanto o mundo colapsa.

Aos 33 anos, a autora vende e publica sua primeira história curta. O primeiro romance seria vendido cinco anos depois. Na parábola original, o semeador precisa lançar as sementes em areia, pedras e espinhos até que ela encontre um terreno fértil para crescer. Ao narrar sua trajetória, Butler parece descrever desafios semelhantes, até encontrar o solo onde ergueria seu trabalho. Quando “Obsessão positiva” é publicado, as sementes já deram frutos: a autora já conta com oito romances vendidos, e a hipoteca da casa da mãe, quitada.

As dúvidas, apesar de tudo, permanecem. Como uma escritora negra, foi questionada em diferentes momentos da utilidade de seu trabalho, inclusive por outras pessoas negras. Diante da violência e opressão vividas na realidade, do que adiantaria uma literatura preocupada com a especulação e a fantasia? Ao analisarmos a obra de Butler, e sua influência no afrofuturismo, podemos imaginar que seu objetivo não era muito diferente da doutrina de Lauren Olamina: mirar uma nova realidade, que sobreviva aos horrores de seu mundo atual.

Em uma nota sobre seu texto “Obsessão positiva”, Butler diz que nunca gostou de escrever sobre si mesma, mas ao mesmo tempo, demonstra que estava feliz em tê-lo feito.

“Sinto que o que as pessoas trazem para minha obra é tão importante para eles quanto aquilo que coloco nela.”

Embora nunca seja indulgente com o leitor, a autora constrói universos onde ele é capaz de se enxergar e construir novos significados. Em seus livros, as respostas nunca são fáceis, mas as possibilidades são múltiplas.

Ao final da nota, ela afirma:

“Não tenho a menor dúvida de que a melhor e mais interessante parte de mim é minha escrita.” Talvez os leitores que conhecem sua trajetória não concordem completamente. Mas, de fato, sobre o alcance e o potencial dos seus livros, não há dúvidas.

Texto por Heila Lima e Luísa Lacombe

Compartilhe

Mais posts

LGBTQIAP+

Leia diversidade, leia Morro Branco

Vivemos em um mundo diverso e nada é mais natural do que encontrar essa pluralidade também na literatura. Trabalhar a diversidade é não ter medo de inovar, e este é um dos compromissos que a Morro Branco sempre assumiu para com seus leitores.

Ler mais »
Rolar para cima