A descoberta de Terramar, por Ursula K. Le Guin

A descoberta de Terramar, por Ursula K. Le Guin

Leia o texto de Ursula K. Le Guin sobre o processo criativo ao longo da série Terramar. O livro está disponível aqui.

Ursula K. Le Guin
Ursula K. Le Guin. Crédito: Marian Wood Kolisch.

Por Ursula K. Le Guin

Terramar surgiu em 1964, em dois contos que escrevi e publiquei. São acanhados, estão mais para o olhar de relance de um marinheiro diante de duas ou três ilhas do que para a descoberta de um novo mundo. Nesses contos, no entanto, Terramar existe da mesma forma que as Américas existiram em 1492 na ilha Watling, hoje conhecida como ilha de São Salvador.

Esses contos falam das Ilhas, do Além-Extremos, das ilhas grandes e ricas do Arquipélago, das Ilhas Centrais, dos ancoradouros cobertos pelo branco dos navios, e dos telhados dourados de Havnor. Terramar está lá, ainda que inexplorado. Alguns dos elementos mencionados (trolls, magia maléfica) nunca mais reaparecerão. Mas, em cada história, um dos elementos acaba se tornando uma parte da tessitura intrínseca de Terramar. “The rule of names” mostra uma magia que opera por meio de nomes e saberes, e “The word of Unbinding” dá um primeiro vislumbre do mundo sombrio dos mortos.

O restante de Terramar aguardou, então, até 1968, quando o editor da Parnassus Press em Berkeley me perguntou se eu escreveria uma fantasia para jovens. Depois de superar o pânico e de uma grande história sobre um jovem mago começar a se delinear em minha mente, a primeira coisa que fiz foi me sentar e desenhar um mapa. Vi e nomeei Terramar e todas as suas ilhas. Não sabia quase nada sobre elas, mas sabia seus nomes. A mágica reside no nome.

O mapa original estava em uma imensa folha de papel, provavelmente em algum tipo de papel kraft, do qual eu tinha vários rolos para meus filhos desenharem. Aquele mapa desapareceu há muitos anos, mas fiz uma cópia cuidadosa em uma escala menor, mais conveniente para manuseio: é o original que gerou o mapa deste livro e que serviu de modelo para que ilustradores de várias edições dos livros, em diversos países, o desenhassem com tanto cuidado e com mais habilidade do que eu.

O Feiticeiro de Terramar. O livro segue disponível aqui.

A utilidade do mapa, para mim, é prática. Quem navega precisa de um mapa. Quando minhas personagens partiam ao mar, eu precisava saber a que distância se encontravam as ilhas e em que direção elas ficavam, uma em relação à outra. O primeiro livro traça uma espécie de espiral de Gont para Roke e depois novamente até

Astowell, todas dentro do Arquipélago. Para o segundo livro, o mapa me apresentou a terra karginesa de Atuan. E depois disso, sempre havia uma ilha ou lugar que eu ainda não visitara e, ali, uma história.

Qual é a ilha mais distante a oeste? Selidor. Olhe para Havnor: tão grande que pode haver pessoas que moram no interior e nunca viram o mar. Que tipo de magia se pratica realmente em Paln? E quanto ao imenso território karginês de Hur-at-Hur, a leste, tão distante quanto Astowell e igualmente desconhecido da população do Arquipélago?

Será que já houve dragões ali?

 A última história de Terramar que escrevi, “The daughter of Odren”, nasceu de um olhar ocioso para o mapa e de imaginar como era a vida em O nos velhos tempos. Ela acabou tendo algumas semelhanças curiosas com a vida em Micenas.

Além das elegantes ilustrações de Ruth Robbins nas aberturas de capítulo para a edição de O Feiticeiro de Terramar pela Parnassus e da bela arte, semelhante a xilogravura, de Gail Garraty, no mesmo estilo, para as primeiras edições da Atheneum, até muito recentemente os livros de Terramar não tinham ilustrações. Em parte, por decisão minha. Depois da sobrecapa exclusiva de Ruth para a primeira edição de O Feiticeiro de Terramar, com o rosto lindamente estilizado em marrom acobreado na frente, as artes das capas dos livros praticamente saíram de meu controle. Os resultados podiam ser medonhos: o feiticeiro caído, branco imaculado, da primeira edição em capa comum da Puffin, do Reino Unido, o homem tolo com faíscas saindo dos dedos que o substituiu. Algumas capas eram muito bonitas, mas as pessoas medievais delicadas em ilhotas com castelos de torres pontiagudas não tinham nada a ver com meu salgado Terramar. E quanto à pele acobreada, parda ou negra, esqueça! Terramar foi mergulhado em alvejante.

Tive vergonha das capas que davam ao leitor uma ideia errada sobre as pessoas e sobre o lugar. Ressenti-me com os departamentos de arte das editoras, que recusavam qualquer sugestão de que a capa devesse se parecer com algo ou alguém e me informavam que “sabiam o que venderia” (um mistério que nenhum capista honesto afirmaria conhecer). Editoras de livros de bolso queriam capas de fantasias comerciais, para todos os fins; os departamentos de literatura infantojuvenil não queriam nada que sugerisse preocupações adultas. Assim, desencorajei todas as sugestões de ilustrações.

À medida que a reputação dos livros crescia, comecei a receber, ainda que a contragosto, mais informações sobre a arte da capa. São desse período, 1991, as quatro belas sobrecapas com pinturas de Margaret ChodosIrvine para os quatro primeiros livros (da Atheneum) e as lindas capas metalizadas dos dois últimos (da Harcourt). Estas últimas existiram graças ao meu editor Michael Kandel, que lutou por mim longa e bravamente. Anos depois, Michael deixou que eu visse o primeiro rascunho de capa que o departamento de arte enviara para ele: um dragão verde e gordo, claramente moldado a partir de um daqueles dinossauros fofos que cospem faíscas, sentado, como um cachorro pidão, em uma nuvem de vapor cor-de-rosa. O santo Michael lutou contra aquele dragão e o derrotou, mas gastou meses nisso.

Grandes artistas pintaram capas para edições estrangeiras dos livros. De todas elas, minha favorita é a lápide da edição sueca de Tehanu, com um retrato sutil de Tenar e Therru. A primeira edição totalmente ilustrada de O Feiticeiro de Terramar é a da Folio Society, de 2015, com pinturas de David Lupton. Tive voz livre na escolha do artista, e David generosamente me enviou os esboços, permitiu que eu reagisse a eles e desse conselhos, e foi atento ao que poderia lhe ser útil naquilo que eu disse. A combinação de nossos temperamentos produziu um Terramar muito sério. Gosto de seu jovem protagonista sombrio e perturbado e sinto um grande estranhamento em algumas das pinturas, como se a magia estivesse realmente acontecendo. Agora, com esta primeira edição totalmente ilustrada de Terramar, posso deixar que a arte de Charles Vess fale por si mesma.

Imagem de O Feiticeiro de Terramar
Ilustração de Charles Vess. A imagem é parte da obra O Feiticeiro de Terramar.

Já escrevi tantas vezes sobre como e por que demorei a escrever os seis livros de Terramar que essa história se tornou como aquele livro que você tem que ler para uma criança de quatro anos todas as noites durante semanas: “Você quer mesmo ouvir isso de novo? Certo, então, lá vai!”.

Escrevi os três primeiros livros em um período de cinco anos: 1968, 1970, 1972. Estava em uma boa fase. Nenhum deles teve a trama detalhadamente desenvolvida ou planejada antes da escrita; em cada um, grande parte da história me ocorreu enquanto seguia para onde minha escrita inevitavelmente me conduzia. Confiante, comecei o quarto livro. A personagem central era Tenar novamente, é claro, para equilibrar as coisas. Eu sabia que ela não permanecera com Ogion estudando magia, mas se casara com um fazendeiro, tinha filhos e a história iria levá-la de volta a Ged. Porém, no meio do primeiro capítulo, percebi que não sabia quem ela era naquele momento. Não sabia por que ela fez o que fez ou o que ela precisava fazer. Não conhecia a história dela, nem a de Ged. Não conseguia desenvolver a trama ou planejá-la. Não conseguia escrevê-la. Levei dezoito anos para aprender como fazer isso.

Eu tinha quarenta e dois anos em 1972; em 1990, eu tinha sessenta. Durante esses anos, a forma de compreender a sociedade que nos obrigam a chamar de feminismo (apesar da ausência gritante de seu oposto, o termo masculinismo) cresceu e floresceu. Ao mesmo tempo, uma sensação cada vez maior de que algo, que eu não conseguia identificar, faltava à minha própria escrita, começou a paralisar minha habilidade de contar histórias. Sem as escritoras e pensadoras feministas das décadas de 1970 e 1980, não sei se algum dia teria identificado essa falta como a falta de mulheres no centro.

Por que eu, uma mulher, estava escrevendo exclusivamente sobre o que os homens faziam? Por quê? Porque fui uma leitora que leu, amou e aprendeu com livros que minha cultura me ofereceu; e eles eram quase exclusivamente sobre o que os homens faziam. Neles, as mulheres eram vistas em relação aos homens, sem basicamente nenhuma existência que não tivesse ligação com a existência masculina. Eu sabia o que os homens faziam nos livros e como se escrevia sobre eles. Mas quando se tratava do que as mulheres faziam, ou de como escrever sobre isso, tudo a que eu podia recorrer eram minhas próprias experiências, não atestadas, desaprovadas pelo Grande Consenso da Crítica, sem a sanção do Cânone Literário, uma voz que se erguia, solitária contra o coro quase em uníssono das vozes masculinas universalmente dominantes falando sobre homens.

Capa de As Tumbas de Atuan.
As Tumbas de Atuan. O livro está disponível aqui.

Bem, mas era verdade isso? Não houve Jane Austen? Emily Brontë? Charlotte Brontë? Elizabeth Gaskell? George Eliot? Virginia Woolf? Outras vozes, longamente silenciadas, de mulheres escrevendo tanto sobre mulheres como sobre homens foram trazidas à forma impressa, à vida. E escritoras, minhas contemporâneas, estavam me mostrando o caminho. Era hora de eu aprender a escrever sobre e a partir do meu próprio corpo, meu próprio gênero, minha própria voz.

A personagem central de As Tumbas de Atuan  é feminina, o ponto de vista é dela. Mas Tenar está saindo da adolescência, ainda não é totalmente mulher. Em 1970, não tive problemas para escrever sobre minha própria experiência do que é ser uma menina, uma garota adolescente. O que eu não conseguia fazer na época, e não fiz até 1990, era escrever sobre uma mulher totalmente madura no centro de um romance.

Curiosamente, foi preciso uma criança para me mostrar o caminho para o quarto livro de Terramar. Menina nascida na pobreza, abusada, mutilada, abandonada, Therru me levou de volta a Tenar para que eu pudesse ver a mulher que ela se tornara. E através de Tenar pude ver Terramar inalterado, o mesmo Terramar de dezoito anos antes, mas parecendo quase outro mundo, pois o ponto de vista não era mais de uma posição de poder ou entre homens poderosos. Tenar via tudo de baixo, pelos olhos de pessoas marginalizadas, sem voz, sem poder.

O ensaio “Earthsea revisioned”, republicado em The books of Earthsea: the complete illustrated edition, discute essa mudança de ponto de vista. Quando Tehanu foi lançado, grande parte da crítica e do público viu o livro como mera política de gênero e se ressentiu de uma traição à tradição romântica do heroísmo. Como tentei dizer no ensaio, não mudar de ponto de vista seria, para mim, a traição. Ao incluir as mulheres plenamente em minha história, obtive uma compreensão mais ampla do que é heroísmo e encontrei o verdadeiro e almejado caminho de volta ao meu Terramar, agora um lugar muito maior, mais estranho e mais misterioso do que jamais parecera antes.

Embora Tehanu leve o nome da personagem infantil, nem ele nem os dois livros posteriores são livros “para crianças” ou podem ser definidos como livros para “jovens adultos”. Abandonei qualquer tentativa de adequar minha visão de Terramar a alguma categoria editorial ou algum preconceito da crítica. A noção de que a fantasia é apenas para pessoas jovens surge de uma incompreensão teimosa sobre maturidade e imaginação. Assim, à medida que minhas protagonistas cresciam, confiei que o público mais jovem as seguiria ou não, como e quando quisesse. No mundo editorial impulsionado pelas relações públicas, isso constituiu um risco, e sou muito grata aos editores que correram esse risco comigo.

Mas havia algo sobre Tehanu que eu mesma não compreendi completamente quando o escrevi e publiquei. Pensei que meu longamente esperado quarto volume (meu título pessoal para ele era Better Late than Never, Antes tarde do que nunca) fosse o fim da história de Ged e Tenar. E disse isso na folha de rosto: “Último livro de Terramar”.

Nunca diga nunca; nunca diga último!

A Última Margem. O livro está disponível aqui.

Por quase dez anos acreditei poder deixar os dois na paz e na felicidade da casa de Ogion em Gont. Mas então fui convidada a escrever mais um conto ambientado nesse mundo. Perguntei-me se seria capaz e passei os olhos por Terramar. Assim que fiz isso, percebi que precisava voltar. Entre o terceiro e o quarto livros não há salto no tempo; depois que Tehanu nos atualiza sobre os anos da vida de Tenar em Gont, o dragão conduz Ged direto do final de A Última Margem para dentro do livro. Mas agora, o tempo havia passado, tanto lá como aqui. As coisas tinham mudado. Eu tinha de descobrir o que acontecera desde que Lebannen fora coroado. Quem fora nomeado arquimago? O que acontecera com a criança Tehanu? Essas questões revelaram outras maiores sobre quem poderia ou não fazer mágica, sobre a vida após a morte, sobre os dragões: coisas que os quatro livros não explicavam, coisas que eu queria saber, assuntos inacabados.

 Como escrevi na introdução de Tales from Earthsea: “O modo como se investiga uma história inexistente é contando-a e descobrindo o que aconteceu”. Fiz isso em cinco contos, o mais histórico deles é “The finder”, além de uma descrição de Terramar, uma breve geografia, história e antro-draconologia descritiva. Esse quinto livro foi tratado como secundário, mas é essencial. O último conto, longo, “Libélula”, é uma parte fundamental de toda a história de Ged e Tenar. É a ligação entre Tehanu e The other wind. “Libélula” antevê o material daquele livro, o que deu errado na Ilha de Roke, no coração da feitiçaria e da sabedoria; por que a vida após a morte, barganhada pela magia, é desprovida de sentido; quem e o que são os dragões.

 Logo depois de escrever essa história, comecei a escrever o sexto conto. The other wind se apresentou a mim sem explicações, urgente, imperativo, final. Se um dragão vier até você e disser: “Arw sobriost! ”, você não faz perguntas. Faz o que ele manda. Diante de você, há um pé enorme e cheio de garras, posicionado como um degrau; e, acima dele, a dobra da junta do cotovelo; e acima dela, a omoplata saliente: uma escada. Você sobe aquela escada, sentindo um calor ardente dentro do corpo do dragão. Você se acomoda entre as amplas asas, segura o grande espinho do dorso que está na sua frente. E o dragão se ergue, decola, leva você para onde você e ele devem ir, voando no outro vento, voando livres.

Fevereiro de 2016.

Ursula K. Le Guin

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