N. K. Jemisin por N. K. Jemisin

N. K. Jemisin por N. K. Jemisin

Autora das séries Dreamblood e A Terra Partida entrevista a si mesma 

Por N. K. Jemisin 

Então meu editor pediu que eu entrevistasse a mim mesma em prol dos meus leitores. Devo admitir que isso é novo para mim. Em princípio, eu meio que gosto da ideia: agora tenho a oportunidade de me fazer perguntas que acho interessantes enquanto evito todas aquelas perguntas incrivelmente irritantes que os entrevistadores sempre parecem fazer, como “de onde você tira as suas ideias?” E posso até mesmo ser grossa comigo mesma! Ei, isso até que é legal. Então aqui vai.

De onde você tirou as suas…? 

TAPA. Viu? Já está sendo divertido! 

Ai. Então, sobre a terra de Gujaareh. Por que você a criou nos moldes do Antigo Egito? 

Sempre fui fascinada pelos impérios antigos em geral, mas particularmente pelos que continuaram misteriosos para os historiadores e cientistas “ocidentais” ou foram ignorados por eles. O Egito na verdade não é o pior deles, mas esse foi parte do motivo pelo qual eu o escolhi: porque já existe tanto conhecimento acadêmico e existem tantas descobertas arqueológicas e artísticas a serem exploradas. Isso tornou a pesquisa mais fácil. 

Mas, além disso, eu era fascinada pela magia egípcia, que parece ter sido uma mescla homogênea das disciplinas religiosa e médica para eles. Fiquei surpresa ao descobrir alguns anos atrás que a filosofia médica dos “quatro humores” era empregada lá porque sempre me ensinaram que era algo que tinha vindo dos gregos. (Mas o antigo Egito, a antiga Grécia e a antiga Roma fizeram muita polinização cruzada.) Isso me fez pensar que outras surpresas poderia haver no estudo do antigo saber egípcio, então comecei a explorar mais. E, mais ou menos nessa época, descobri um novo ramo da ciência moderna que parecia se encaixar muito bem com essas coisas egípcias: a teoria psicodinâmica.

N. K. Jemisin, autora da série Dreamblood.

Ah, então foi isso o que levou você a criar um sistema mágico baseado na teoria dos sonhos de Freud e na medicina egípcia. Porque são coisas loucas.

Bem, não. (E Freud diria que não existe “louco”.) A medicina moderna reconhece o poder da medicina subconsciente. Você já ouviu falar do efeito placebo — sei que ouviu porque você sou eu — em que as pessoas que recebem um comprimido de açúcar (ou alguma outra coisa que não tem teor medicinal) costumam responder tão bem ao tratamento quanto as pessoas que recebem o remédio de verdade. Às vezes sua recuperação não é nada menos do que milagrosa e elas melhoram porque acreditam que deviam melhorar. O poder da mente de afetar o corpo é algo que foi entendido e explorado desde os tempos antigos. Daí não é muito difícil chegar à ideia de que um sonho dirigido e lúcido poderia, de algum modo, ser usado para explorar o efeito placebo. É algo que Jung contemplou abertamente e explorou por meio de um contexto religioso, em particular da mandala hindu… mas eu estou divagando. 

Então essa é a conexão religiosa. Tudo bem, admita: discretamente, você está tentando converter pessoas ao hinduísmo!

Não, isso é uma estupidez. Eu não sei nada sobre o hinduísmo além do que li em alguns livros. E, de qualquer forma, não sou hindu. 

Não? 

Não. 

Mas você mencionou uma influência hindu na Trilogia Legado.

É, e do zoroastrismo, e das mitologias greco-romana e nórdica, e nos contos trickster de indígenas norte-americanos, e dos espíritos do vodu, e da Santíssima Trindade Cristã. Sempre acho interessante como as pessoas escolhem se concentrar em uma coisa de uma lista. 

Dei uma lista porque todos os itens são importantes. 

Droga.

Isso não é uma pergunta.

Certo, então você está fazendo proselitismo de alguma coisa? Porque você fica explorando a religião na sua escrita e isso tem que ter algum significado.

Bem, eu me considero agnóstica, não no sentido de duvidar da existência de Deus, mas no sentido de duvidar da capacidade de qualquer religião humana de abranger o divino. Mais especificamente, acho que a religião sozinha não é suficiente para abranger o divino. A religião é um guia útil para a vida, presumindo que você ainda esteja vivendo na sociedade que existia na época da fundação da religião. É útil para unificar e motivar uma população. Mas para nos entendermos e para entender o universo, precisamos explorar outras escolas de pensamento: a complexidade da consciência humana, os limites da ciência, e mais. Acredito que um dia precisaremos interagir com outras entidades inteligentes e trocar ideias. E precisamos ter cuidado com a maneira como deixar os outros pensarem e aprenderem por nós pode se voltar contra nós. Então, se existe algum tema religioso na minha obra, é esse. 

Como é que é?

Olhe, apenas escreva.

Certo, mas… sobre Ina-Karekh, a “terra dos sonhos” gujaareen. A intenção foi que ela representasse o Céu Cristão? E a terra das sombras seria o Inferno?

Não. Ina-Karekh se baseia no inconsciente coletivo de Jung. E o método usado para entrar lá está enraizado na crença egípcia: a separação do ka, a energia de vida da alma, do ba, a materialização física da alma, em que o ka está contido em vários órgãos e, sozinho, poderia ter dificuldade para viajar para outros planos de existência.

É, tanto faz, vamos continuar com algo mais interessante. Os Coletores são todos gays, certo? Eles são totalmente gays. 

Não existe “gay” em Gujaareh. Na sociedade gujaareen, as pessoas amam quem amam. Mas, se usássemos os rótulos americanos modernos em qualquer um deles, Nijiri seria gay.

E o resto?

Eles são mais difíceis de classificar. A maioria dos gujaareen é oportunista: eles vão transar com todo gosto com qualquer um por quem sintam atração, então nós os chamaríamos de bissexuais. Mas esse rótulo na verdade não se encaixa porque ser bissexual não é só sobre com quem você se deita. De qualquer modo, Ehiru era heterossexual antes de se tornar Coletor: isso os transforma de mais maneiras do que apenas espiritualmente. Da forma como as coisas são, todos os Coletores estão mais perto de ser assexuados. 

Todas as pessoas nesse livro são africanas?

Não. Não é a Terra. Não existe África.

Você sabe o que eu quero dizer. Todos são negros?

Alguns são. Alguns são meio que ruivos, ou marrom-amarelados, e alguns são bronzeados com sardas, e alguns são brancos o bastante a ponto de não sair ao meio dia. Mas já sei aonde você quer chegar. Gujaareh foi baseada no antigo Egito. (E Kisua, na Núbia antiga.) O Egito, apesar do que o meu livro de geografia do ensino fundamental tentava me dizer, fica na África; portanto, seu povo é africano. Mas “africano” não tem uma aparência fixa, da mesma forma como “asiático” ou “europeu” não têm. Além disso, o Egito era o ponto de intersecção do comércio daquele lado do planeta naquela época. Comerciantes do que se tornaria a China, do Império Persa, da Grécia, do Império Romano, do Império do Mali, dos Vikings, dos Núbios, todos passavam pelos portos do Egito. Tudo o que sabemos sobre o Egito antigo, dos modernos estudos genéticos das múmias até a própria arte deles, sugere que era uma sociedade multicultural, multilíngue e multirracial. Então foi isso o que eu tentei retratar aqui. 

Você poderia ter feito essa história em um cenário medieval europeu.

Isso não é uma pergunta, e não, eu não poderia. Para começar, o sistema de magia está enraizado na antiga ciência e medicina egípcia, e a medicina na Europa medieval era uma coisa completamente diferente… 

POR QUE VOCÊ ODEIA A EUROPA MEDIEVAL?!?!?!!?!

Ahn, você pode se acalmar? Precisamos manter a nossa pressão arterial dentro de um limite saudável.

Hater.

::suspiro:: Olhe, eu não tenho nenhum problema com a Europa medieval. Tenho um problema com a fetichização da Europa medieval na fantasia moderna, é diferente. Tantos escritores e fãs de fantasia simplificam a estrutura social do período, tornam monótonas as interações sociais, tratam os conflitos como binários em vez de tratá-los como a complicada tapeçaria dinâmica que eram na verdade. Eles não estão fazendo uma Europa medieval, estão fazendo Fantasia Simplista Das Ilhas Britânicas Cheia De Muitos Caras Com Espadas E Não Muito Mais. Nem toda fantasia medieval europeia faz isso, claro, mas um número suficiente faz a ponto de, francamente, me fazerem rejeitar o cenário. Pode ser que eu aborde uma Europa medieval não simplificada um dia… mas, sinceramente, eu duvido. Adorei o desafio de escrever os livros da duologia Dreamblood, mas descobri que prefiro criar os meus próprios mundos a imitar a realidade. Construir um mundo do zero é mais fácil. 

Se você gostou tanto de escrever os livros da duologia Dreamblood, por que só existem dois?

Pode haver mais. Tenho muitas histórias da Lua dos Sonhos na minha cabeça. Mas eu tenho mais ideias do que tempo para escrevê-las, infelizmente.

É porque você é preguiçosa e desorganizada e não tem disciplina.

TAPA.

Você é tão má.

Já terminou?

Tudo bem, última pergunta. É um gigante gasoso que você tem aí no bolso ou só está feliz de me ver?

Não me bata de novo!

… Sim, a Lua dos Sonhos é um gigante gasoso. O mundo da Lua dos Sonhos é uma de suas luas, a Lua da Vigília é outra. Os gujaareen estão cientes disso, uma vez que sua astronomia é quase tão desenvolvida quanto a do Egito, mas o hábito de se referir à Sonhadora como lua antecede muito a essas descobertas, então pegou.  

Na verdade eu tentei elaborar a astrofísica, algo pelo que agradeço aos instrutores e aos meus colegas participantes da oficina de astronomia Launch Pad da Nasa para autores de ficção/fantasia e outros profissionais criativos do qual tive o privilégio de participar em 2009. Não muito disso entrou na duologia (talvez um dia vá entrar, se eu escrever uma história sobre os Professores), mas foi divertido brincar com essa noção. Quaisquer erros são meus. 

Eu não perguntei tudo isso para você. Você apenas gosta de se ouvir falar, não gosta?

Ah, para… Chega. Para mim já deu.

Você é uma péssima entrevistada, você sabe disso, não sabe? Ei, essa é uma pergunta!

Espere, você foi mesmo embora? Ah, qual é! Você não é engraçada. Volteeeeee…

Em retrospecto, acho que não gostei de me entrevistar. Ah, bom.
Fiquem em paz, todos vocês.

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